Júlio
Caminhava em passos
rápidos em direção ao trabalho, se demorasse mais cinco minutos arrastando-se
sobre aquela calçada chegaria atrasado. Odiava isso! Aliás detestava qualquer
coisa que lhe fugisse do controle, mesmo que fosse horário ou um assunto banal
do dia-a-dia. Passara muito tempo estudando de tudo um pouco. Gostava de saber
sobre o mundo e quando algo lhe escapava ficava desesperadamente obcecado com o
tema. A única coisa com a qual não se importava era o que chamavam de amor, um
negócio abstrato que alguns poucos tolos teimavam em dizer que existia.
Abriu a porta do seu
escritório no exato segundo em que o ponteiro marcava oito horas. Respirou
fundo, não se atrasara. Sentou na sua grande mesa de madeira, analisou alguns
papéis que estavam espalhados sobre ela, discou alguns poucos números para um
ramal já conhecido e pediu um café. Havia passado a noite em claro, com aqueles
seus pesadelos horrorosos que remetiam ao passado, não gostava nem de lembrar.
Fora traumático, porém havia terminado e ele escapara ileso, construíra seu
escritório e tornara-se desapegado de qualquer sentimentalidade fútil.
Apesar de toda a
posição severa ele sabia se divertir. Passava as suas horas de folga afundado
em seu videogame, alguns jogos típicos de meninos, mas que exigiam alguma
habilidade e estratégia, aliás, ele detestava jogos de sorte. Nada se construía
com sorte, ele aprendera isso desde muito cedo, quando começou a trabalhar aos
17 anos. Ralou muito pra chegar onde estava e depois de sofrer algumas
decepções se inspirou ainda mais. Guardou uns bons finais de semana para leis e
outros idiomas, as vezes, quando necessário para a mente saía com os amigos,
mas não era um fator muito comum.
Sua concentração fora
quebrada, três batidas firmes na porta. Imaginou que fosse seu café e mandou
que entrassem. Continuou absorto em seus papéis ao dar bom dia para a
secretária, só ao obter a resposta percebeu que havia algo diferente ali, a voz
não era a de Mariela. Levantou a cabeça para checar quem era, um rosto novo,
talvez fosse bonito, mas ele não prestou muita atenção nisso, ficou mais focado
nos desenhos que tinham em seus braços e esperou que ela se apresentasse.
Ela ficou um pouco
envergonhada com os olhares para suas tatuagens, mas não se acanhou.
Identificou-se como Sara, a nova estagiária da empresa. Júlio fez um gesto
qualquer com a cabeça, estava incomodado com aqueles rabiscos e pediu para que
a nova funcionária só viesse ao emprego com os desenhos cobertos. Ela se
chateou um pouco, mas nada poderia fazer. Entregou o café, recebeu algumas
ordens sobre o que fazer e saiu da sala apressadamente.
Júlio sempre fora
reservado, principalmente com estranhos. Não destratava as pessoas, conversava
sempre formalmente, mas nunca passava disso, quando alguma coisa fugia do seu
controle ou da sua “zona de segurança”, ele se blindava ou então corria com uma
dor de cabeça qualquer. Essa tática funcionava perfeitamente bem com todos, mas
não seria suficiente para barrar a rebeldia de Sara.
Os dias se passaram
como normalmente se passam os dias, quando se está feliz eles voam, quando se está
chateado eles se arrastam trazendo o maior tédio possível. O convívio entre os
personagens dessa trama não foi grande. Foi apenas o necessário e aturável para
ambas as partes. Sara habituou-se a cobrir suas lindas tatuagens e Júlio
aprendeu a não olhar com cara feia toda vez que algum resquício delas aparecia.
Em algumas semanas o trabalho estava pesado e horas extras forçavam que
ficassem mais tempo na presença um do outro.
Competência, a palavra
de ordem que regia aquela empresa. Sara havia se demonstrado bem capaz de
exercer as tarefas que lhe competiam, em alguns casos conseguia até extrapolar
o que ela cabível. Júlio percebera isso logo nas primeiras semanas e tornou-se
perceptível seu interesse profissional por aquela jovem garota. Domesticar,
essa era a palavra que ele repetia mentalmente para si. Iria domesticar Sara,
controlar seus impulsos mais rebeldes e ela seria uma das melhores
funcionárias, respeitada por toda a equipe.
Um dia qualquer, por
obra do destino ou do acaso, cada um pode livremente escolher sua concepção,
estavam concentrados em um problema daqueles. Júlio em sua grande sala e Sara
em sua salinha divida com mais alguns estagiários. A empresa que estava sempre
fervilhando de pessoas, neste momento estava vazia. E a concentração de Sara
foi quebrada por uma voz forte, um timbre cantante. Passado o susto inicial ela
pode acompanhar a melodia e ficou encantada com a canção. Deixou-se levar para
algum lugar tranquilo em sua mente, estava totalmente absorta e precisava ver
aquilo de perto.
Júlio cantava
distraidamente, esquecera-se por um momento que alguém poderia ouvi-lo. Ele
estava leve, todas as tensões haviam sumido, seu rosto estava mais calmo, suas
expressões eram de uma serenidade invejável. E isso, refletiu Sara, o deixava
intensamente mais bonito, era quase impossível resistir à vontade de tocar sua
face e ela foi se aproximando, sem nenhuma noção de perigo e espaço. A urgência
gritava em seus ouvidos.
Ele percebeu que não
estava sozinho e só então fitou o rosto daquela mulher e pela primeira vez a
enxergava de verdade, ela tinha a pele bem clara que contrastava com seus
cabelos negros e encaracolados que pendiam até a cintura. Tinha ombros largos
embasados numa feminilidade embaraçosa, que se completava com sua cintura fina,
quase fora do normal. Então ele sorriu sem querer, colocando fim a sua canção e
ao encantamento ao qual Sara estava submetida.
A garota ficou meio
abobalhada, tentou se justificar inúmeras vezes, mas a voz falhava, quando algo
conseguia lhe sair da garganta era incompreensível. Ele se levantou e só então
ela pôde se dar conta do seu porte físico. Júlio era um homem alto, media
aproximadamente 1,83, ultrapassando doze centímetros a altura de Sara. Nem
magro, nem gordo, deveria estar no peso ideal para avaliadores físicos. Tinha
um andar elegante, o que o tornava ainda mais notável, além dos cabelos negros
e do sorriso misterioso.
Estavam perto demais e
só ela pareceu perceber aquilo. Alguma coisa de muito errado iria acontecer se
ninguém falasse nada. Então ela reuniu forças e finalmente conseguiu dizer algo
sobre não querer atrapalhar. Júlio se despertou e a muralha, que havia se desconstruído
voltou a se reerguer em poucos segundos. Ele foi educado, porém ríspido, o que
a deixou um pouco transtornada. Despediram-se formalmente.
Naquela noite Júlio não
dormiria. Naquela semana Sara não pararia de maquinar antes de dormir. Ficavam
desconcertados cada vez que se viam, mas isso serviu para que conversassem
mais, figurinhas sobre livros e músicas. Ele falava sobre os grandes nomes do
rock e discos incríveis. Ela explicava sobre a literatura, história e algum
romance água com açúcar. E as conversas iam fluindo naturalmente, cinco minutos
se transformavam em anos de conhecimento. Agradável deveria ser a palavra mais
adequada.
Começaram a se
encontrar fora do trabalho, mas tudo muito casual. Júlio quis saber sobre as
tatuagens de Sara e ela então lhe explicou seus detalhes, contou sua história e
suas motivações. Ele então passou a admirá-la mais e confessou que quando mais
novo teve vontade de fazer uma. Ela sorriu e deu veredicto que nunca era tarde
para se fazer o que quer e o que lhe deixa feliz. Júlio cogitou a possibilidade,
mas sua idade e posição realmente não lhe permitiam essas pequenas futilidades.
O tempo foi generoso e
vou como um passarinho. Os momentos favoreceram cada troca de palavras e o sutil
encontro de olhares. Algo mudara na severidade de Júlio, ele estava menos
ansioso e preocupado. Sorria mais e até se dava uma folga de vez em quando. Era
um efeito interessante, não sabia que conversar com alguém lhe fazia tão bem
assim. E foi então que percebeu que não eram só as conversas e sim o conjunto.
Olhares, sorrisos, pequenos gestos e o enrubescer das faces. Correra tanto
disso e olha o que o destino havia lhe preparado, estava involuntariamente
apaixonado. E agora?
Pensou em sufocar, não
era o mais racional a se fazer, mas era com certeza o mais seguro. Não. Não ia
dar certo. E uma viagem? Algum tempo longe lhe faria esquecer tudo. Pobre tolo,
passaria todos os dias pensando nela e sofreria ainda mais. Depois de imaginar
todas as fugas possíveis percebeu que não havia escapatória. Estava ciente
disso. Precisava se declarar, mas como? Ah, ele pensou, danem-se as
inseguranças, para um homem de 30 anos isso não cai bem.
O telefone de Sara
tocou às 19 horas de sábado. A voz metódica de Júlio lhe pedia seu endereço,
ela lhe passou sem pressa, explicando cada detalhe de qual caminho mais rápido.
Ao desligar o telefone seu coração entrou em pane geral, meu Deus que bagunça!
Correu tropeçando em tudo tentando arrumar alguma coisa e fazer seu apartamento
parecer apresentável. Depois do desespero foi se arrumar com vestígios de
pressa.
Às
20:30h ele chegou. Sara percebeu que havia algo errado. Ele estava apressado e
impaciente, suas mãos suavam frio. Ela pediu que ele se acalmasse e indagou o
motivo de tanta aflição. Júlio tentou então se lembrar do texto decorado e
ensaiado milhões de vezes, respirou fundo e prestou atenção naqueles olhos
puxados, porém muito redondos e profundos.
-
Algum problema Júlio?
-
AH, pro inferno todas essas palavras, isso aqui não é um livro!
Beijou-a.
E um conjunto de sensações foram se misturando, o suave com a urgência, o
perfume forte e o doce, o severo e o rebelde, as músicas e os livros,o Júlio e
a Sara. E assim ficaram por uma pretensiosa eternidade, nessa história de um homem que redescobriu o amor.
Gabriela Castro Lima Aguiar
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