Álvaro Vince, sem roteiros (Parte V)


- Você é esquisito.
Álvaro segurou o sorriso para não parecer muito debochado e ofender a moça. Bebericou sua xícara de café e pacientemente abriu o jornal. Notara que a moça esperava uma resposta, mas simplesmente quis fazê-la esperar.
Ela o socorrera quando estava caído sozinho na praça e não contara para ninguém, assim como ele havia lhe pedido. Pediu um café e uns biscoitos no quarto para ter um momento a sós com ela, sem levantar suspeitas e para analisar por quanto tempo ainda manteria de sua palavra.
Débora não lhe enchera de perguntas, nem tampouco mencionou nada que lembrasse a noite anterior. Apenas trouxera o lanche e ficara em silêncio por um bom tempo, quando ele lhe pediu para esperar. Depois de não mais aguentar ficar calada, disse algo que ele não esperava. Ela com certeza era bem diferente.
- É o que sempre dizem – Falou após sua pequena reflexão, enquanto passava os olhos pelas notícias sem prestar atenção em nenhuma.
- E você não se incomoda? – Ela arqueou a sobrancelha curiosa.
- Não – Respondeu e continuou fingindo que estava lendo seu jornal.
- Mas por que você faz tanta questão de ser diferente dos outros?
Débora foi incisiva demais na sua pergunta. Só percebeu o tom que usara depois que as palavras já haviam saído da sua boca. Pensou em corrigir-se, mas não o fez.
- Eu não faço nada. Apenas sou. É o meu jeito – Ele decidiu que seria o tão amigável quanto fosse possível – Você tem a sua maneira de ser, correto? Eu também tenho a minha. Nossas personalidades e experiências de vida resultam na nossa essência.
- Sim. Entendo...- Débora ficou pensativa.
- Você não costuma falar muito, não é?
- Não – Ela sorriu e decidiu que não iria dar a ele o gostinho de vê-la tagarelar ou encher-lhe de perguntas como certamente todas as outras pessoas sempre faziam.
- Você não tem medo de ser demitida por chamar um hóspede de esquisito? – Ele sorriu.
- Não quando o hóspede em questão esconde de todos que foi agredido na rua e só eu vi o fato. E não contei para ninguém.
Álvaro gargalhou. Há muito tempo ninguém o enfrentava daquele jeito. Na verdade, há muito tempo não se sentia tão descontraído também. Débora era uma mulher peculiar e com certeza isso lhe renderia uma personagem fascinante.
- Você é muito esperta.
- É o que dizem... – Ela imitou-o e ele sorriu novamente.
Débora lembrou-se dele desacordado na rua e do desespero em que ele parecia estar submerso, quando enfim conseguiu acordar. Alguma coisa no passado daquele roteirista era chocante demais. Talvez fosse isso o real motivo da escolha da sua profissão...
- Sr. Vince, o senhor deveria contar à polícia o que aconteceu ontem. – Ela estava séria.
- Eu mesmo vou resolver isso. Chamar a polícia causaria muito alarde. Vou resolver isso da minha maneira – Álvaro percebeu que ela estava preocupada e foi mais brando – Não se preocupe, está tudo bem.

A camareira assentiu. Recolheu a bandeja da mesa e sem dizer mais nenhuma palavra retirou-se do quarto. Álvaro quis protestar e pedir que ficasse, mas não o fez. Deixou que ela fosse embora, já havia tomado muito do seu tempo de trabalho.

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