Nem tudo é um romance: a construção de Sophia
Riscaram na minha pele,
não sem dor, as asas de um pássaro. O mais estranho é que eu autorizei. E como
se já não fosse muita audácia, ainda fiz questão de escolher o lugar. Costela.
Esculpiram em mim o que Deus não havia me dado. Estava achando tudo o máximo,
talvez fosse só o efeito das drogas que experimentei.
Saí do estúdio, que
cheirava hospital, tinha uns pôsteres de bandas de rock e algumas mulheres
seminuas pintadas nas paredes, com um plástico vermelho cobrindo a vermelhidão
da minha pele. Meus pais me matariam, mas foda-se. Eu ia arrumar minhas coisas
e morar com uma amiga até meu apartamento ficar pronto.
Ao chegar em casa, meu
pai estava a minha espera. Ele tinha o dom de adivinhar quando eu aprontava e
arrogância de nunca me elogiar quando fazia algo certo. Não lembro direito como
ele viu a tatuagem, ainda estava chapada o suficiente quando o cinto veio de
encontro as minhas pernas violentamente. Uma, duas, três... Minha mãe que
assistira tudo desde o começo pediu para que ele parasse e eu subi para o meu
quarto sem derramar uma lágrima. Era a última vez. Jurei para mim mesma.
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Quando terminei o
Ensino Médio, aos 17 anos, consegui um emprego antes de ingressar na faculdade.
Preferia trabalhar à estudar. Não era uma aluna medíocre, mas nunca fui muito
boa. De verdade, nunca me destaquei em absolutamente nads. E não me incomodava.
Os grupinhos dos nerds me excluíam porque eu não era o bastante. O dos
populares por eu ser esquisita. E o dos esquisitos, por eu conseguir manter
conversas normais por longos períodos de tempo. Passei muito tempo me culpando
por isso, mas no final descobri que gostava mesmo de ficar só.
Os poucos amigos que
fiz foram na faculdade de História. Pra quem não queria ir, acabei gostando.
Mas não exatamente do curso. Aprendi muita coisa, algumas boas e outras nem
tanto. Eu preferia as “nem tanto”, claro. Me formei no tempo certo e passei
muito tempo para exercer a profissão.
Provavelmente por isso
meus pais ainda me tratavam como uma adolescente. Eu tinha 25 anos, cara.
Porra! Uma pessoa de 25 anos não pode escolher o que quer? Não enquanto morasse
sob o mesmo teto. Resolvi mudar, se o problema era esse. Arrumei minhas coisas.
Fiz a tatuagem e no dia seguinte ao da surra me mudei. Não queria dar trabalho
para minha amiga, mas não ficaria naquela casa até entregarem meu apartamento.
Meu pai não me deu
tchau e minha mãe não me deu crédito. Disse que eu voltaria em uma semana. Mas
foi só quando se passaram cinco meses da minha partida que a ficha dela caiu.
Nessa altura eu já estava no meu imóvel e havia aprendido a morar só. Se ela
tivesse ido nos primeiros dias, eu provavelmente voltaria para casa engolindo
todo o meu orgulho.
Não foi fácil morar
sozinha. A liberdade, apesar de muito atrativa, tem um preço considerável. Meu
emprego como gerente de vendas numa grande empresa estava um caos, então tentei
investir na minha área de formação. Pensei em dar aulas em colégios, não
deveria ser difícil. Recebi de todos a mesma desculpa, meu perfil não era o que
procuravam. Tome um porre para cada não. Não sei exatamente como meu fígado
ainda funciona bem.
Um dia, meu pai foi me
visitar. Repito: era incrível como ele tinha um faro apurado para encrencas.
Olhou meu apartamento com o maior asco possível. Fez comentários sarcásticos
sobre os meus gostos e deu uma palestra sobre sobrevivência. Para a cartada
final jogou na minha mesa uma proposta de emprego que ele conseguiu com um
amigo. Pensei em fazer um escândalo, mas só peguei o papel e disse que iria
pensar. Covardia, diriam uns. Bom senso, aprovariam outros.
Escolhi tentar. Porque
após passar uma noite em claro, concluí que nunca tinha ouvido meu pai.
Filtrava só as críticas, os conselhos eram ofuscados. E por um lado, se desse errado
eu poderia culpá-lo imensamente. Sorri com essa hipótese. Fui na agência no
outro dia e após um teste psicológico fui contratada.
Meu novo emprego não
era de todo mal. Eu iria guiar pessoas num museu da cidade com explicações
históricas sobre as peças. Depois, quando fosse devidamente treinada
pesquisaria objetos e fatos antepassados. Por incrível que pareça, essa parte
me agradava. Ficaria menos com pessoas e mais com meus pensamentos. Não tinha
nem começado e estava fascinada. Deveria agradecer meu pai por isso? Não. Por
ele ter dito que meus discos eram horrorosos.
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Foram dias árduos correndo de sala em sala do museu, explicando quadros para pirralhos que não sabiam fechar a boca para mascar chiclete. De vez em quando me faziam perguntas interessantes, mas geralmente eram comentários repletos de malícias e deboches. Às vezes eu sorria para fingir simpatia, uma coisa que aprendi nos poucos dias de trabalho.
Só após um ano fui
transferida para o que tanto queria. Meu supervisor era um homem ranzinza e chato.
Colocava defeito em tudo que eu fazia. Se fosse uma descoberta não era legal,
se fosse um relatório era mal feito e assim por diante. Ele sempre me dizia
isso com um sorrisinho escroto no rosto. Para cada dente ridiculamente branco
dele eu imaginava um meio de tortura diferente. Matei-o na minha cabeça de
formas muito interessantes, várias vezes.
Demorou certo tempo
para que meus estudos tivessem valor lá dentro. Precisei ralar muito para
provar todas as minhas teorias e enfim ganhar um “parabéns”. Mau humorado, mas
foi alguma coisa. Depois disso eu pude caminhar com minhas próprias pernas e
dar todos os meus tropeços sozinha. Levantei com a cabeça erguida de cada um
deles e ainda ia para o salão arrumar os cabelos. Aprendi com o tempo.
Eu não fiquei “elitizada”,
como meu pai gostava de me definir agora. Ainda tinha meus antigos pôsteres de
rock. Fazia, geralmente, o que me dava vontade e a decoração continuava a
mesma. Minha relação com meus pais mudou pouco. Comprei um carro legal e podia
me dar o luxo de gastar com o que me fazia bem. Quanto as tatuagens não fiz
mais nenhuma. Diminuí o número de cigarros por dia e a frequência dos porres.
Estava melhor comigo, apesar de fazer coisas que condenava antes.
Tive alguns casos. Nada
que significasse mais do que uma ou duas noites. Não estava preocupada com
isso. Para me construir, eu só precisava de mim mesma. Meu pai me disse uma vez
que para ser alguém eu só precisar querer e lutar para isso, no dia eu mandei
ele calar a boca, mas hoje eu vejo que tinha razão.
Fiz amigos novos. Agora
digo com orgulho que tenho 4 amigos. Todos bons, caso contrário não os
definiria assim. Um deles vai se casar mês que vem e eu não gosto da noiva. Mas
no final das contas serei obrigada a conviver, por ele. Um esforço a mais não é
problema.
Minha mãe aprendeu a
ter mais voz. Ouvi ela discordar com meu pai algumas vezes. O orgulho que
brotou em mim foi maior do que se eu ouvisse que era a melhor filha do mundo,
na verdade não posso comparar porque nunca me disseram isso. Mas imagino,
apesar da imaginação nunca ter sido meu forte.
Hoje tenho 31 anos, um
bom emprego e relações estáveis. Não quero casamento, nem filhos. Possuo uma
vida boa, sem ser medíocre. Ainda quero muito mais, porque sei que sou capaz.
Sou feliz, não o tempo todo, mas quem é? O mais importante de tudo é que
aprendi a enfrentar meus próprios desafios e a respeitar os outros. Por mais
que estejam errados, eles sempre tem algo a ensinar. E finalmente, acredito que
posso ser melhor que todos eles por não guardar rancor, não por ser mais forte,
mas por querer evoluir.
Gabriela Castro Lima
Aguiar
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