Álvaro Vince, sem roteiros (Parte I)
Ele estava em algum lugar do mundo
bebendo o seu café. A fumaça fina saía pelas bordas da xícara branca e
perdia-se no ar gelado. Não importava em que país estivesse sempre tomava café
todos os dias ao anoitecer, mesmo que isso às vezes fosse muito difícil.
Tinha
o péssimo hábito de pensar. Pensar sobre tudo, ele dizia. Até sobre a longa
jornada de algumas formiguinhas ao subirem a parede do quarto. Pensava sobre o
ócio, refletia sobre o trabalho árduo, julgava os descrédulos e abominava os
otimistas. Era tudo uma questão racional. E pensar, era a qualidade ímpar de um
ser racional.
Pousou
a xícara sobre o pires delicado e passou a observar a paisagem lá fora. Era
inverno. Tudo estava cinza e branco. Tons melancólicos, ele ponderou, dariam
uma boa inspiração para um filme de suspense ou para um drama. Pegou seu lápis
e rabiscou alguma coisa num bloco de folhas brancas.
Roteiristas
se inspiravam em coisas inimagináveis, até na camareira do hotel com o olhar
sombrio e a boca suave. Rabiscou mais algumas linhas. Seria uma história
interessante... Com o frio cortante e temperamentos explosivos, aquecidos pelo
curto pavio da paciência e pela faísca da vingança.
Álvaro
soltou o lápis e pegou sua xícara novamente. Recostou-se na cadeira. Bebericou
o café. Havia começado a escrever roteiros para esquecer a sua vida de verdade.
Viajar o mundo, uma consequência das suas boas histórias, também o ajudou
bastante. Quase ninguém sabia o seu verdadeiro nome, nem as suas raízes. As
pessoas sabiam apenas o que ele contava ou o que ele lhes deixava saber.
Seu
celular tocou e ele olhou com desdém ao ver o nome escrito na tela. Mulheres
interessadas em fama eram fáceis demais, bonitas em excesso e sem graça ou
inteligência que durasse mais do que 3 encontros. Não atendeu. Não queria
companhia esta noite. Nem queria ninguém sussurrando coisas audaciosas ao seu
ouvido nem gritando para as paredes. Queria silêncio, queria paz para pensar.
Colocou
a xícara de volta no pires e deu uma olhada rápida pela mesa bagunçada, com vários
papéis desordenados. Olhou fixamente para uma página de jornal, onde o seu
rosto estava estampado. Um jornalista medíocre fez uma matéria pior ainda sobre
a sua vida, com fatos incompletos e informações duvidosas. Mas trazia uma
revelação cruel: Álvaro Vince, o grande roteirista do cinema, havia deixado o
próprio pai na miséria.
Ele
pegou o pedaço do jornal e riu. Que ironia a vida! O homem que maltratou-o a
vida inteira agora era o coitadinho. Rasgou a matéria em pedacinhos e deixou
que eles caíssem ao chão lentamente.
Não
estava preocupado com a repercussão que isso causaria, nem se lixava pra sua
reputação na mídia. Só estava furioso com uma coisa: sua história poderia vir à
tona e com ela ressurgiriam todas as lembranças e cobranças...
Mas
tentava se acalmar ao lembrar que tinha ao seu lado um dos melhores advogados e
que ele faria o possível para que nada mais fosse noticiado e para que o velho
calasse a boca.
Havia passado muito tempo pensando que fugira
dos seus medos, quando na verdade colecionava-os e os colocava no papel, em
cada personagem, em cada filme, em cada detalhe. E agora eles queriam ter vida
e sair dele.
Comentários
Postar um comentário