1.058 palavras para você

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Estava envolto pela fumaça do seu último cigarro do dia. O cheiro já nem o incomodava mais, na verdade, nunca o havia incomodado. E aquela fumaça ainda era menor do que a maneira como sua mente estava embaçada. Passara a semana trabalhando e se esforçando para atender aos caprichos de pessoas que ele nem sabia o nome, mas a vida era mesmo assim não é? Dar o seu melhor em busca de reconhecimento por pessoas que não tem muita importância. Ele não se importava com isso, até gostava, entretanto, naquele momento estava muito cansado.
            Precisava parar um pouco. Não iria conseguir mais nada naquele projeto se continuasse só com fumaça na cabeça. Resolveu beber algo. Foi até sua cozinha, com os pés descalços, para ele não existia nada melhor do que andar com os pés no chão. Talvez fosse uma alusão a manter a razão ou apenas uma leve sensação de liberdade. Optou pela liberdade, pelo menos por hoje. E para dar mais um gostinho a ela decidiu que beberia cerveja. Sim, bem gelada, para inebriar qualquer agonia e fazer esquecer detalhes. Se alívio tivesse um gosto, naquela noite seria de cerveja. Ou pelo menos sua garganta jurava que sim quando os primeiros goles passaram por ela.
            Voltou para seu quarto. Colocou uma música bem baixinho. Já era madrugada e ele não queria acordar nenhum dos outros habitantes da casa. Foi para janela para aproveitar mais um pouco o clima agradável daquela noite. Perdeu-se por uns instantes. Pegou-se contemplando a calmaria, perdido em pensamentos que jamais ousariam acontecer. Filosofava sozinho, pois era bem melhor do que ser interrompido por ideias estúpidas de pessoas que não compreendiam a grande beleza do mundo, a do seu mundo. Lembrou-se então de uma vez alguém lhe dissera que ele era um poeta que não escrevia. Sorriu. Não, ela não lhe dissera, ela lhe escrevera.
            Procurou o texto. Leu-o com atenção. Segundo seus cálculos já era a terceira vez naquela semana que o lia. Ele tinha gostado daquelas palavras, não sabia exatamente por que, mas tinha gostado. Talvez por ver que alguém se preocupava em ver o que estava mais afundo em sua alma e não só as aparências. Talvez... Por onde mesmo andava aquela menina? Longe. Bem longe. Mais que longe. A vida quis que fosse assim por alguma razão. E tudo tinha um propósito. Não julgaria, nem se lamentaria. Nem era do feitio dele lamentar-se.
            Lembrou-se então do dia em que estivera num barco e quase afundara no oceano. E dessa vez não era um sonho. Sorriu ao lembrar-se de todas as coisas malucas que aconteceram nesse dia. Animais enormes, barcos quebrados, um céu quase infinito e uma mulher de voz rouca que falava diferente. Falava diferente dele. Era tudo o que tinha, lembranças. E fotografias, claro. Mas as lembranças eram mais fiéis do que as fotografias. Principalmente porque fotos não trazem palavras. “Você é má? Quem sabe?”. Sorriu. A mulher que não sabia receber elogios sem corar até as pontas dos cabelos... Não deveria pensar nisso. Nem queria, de fato, só surgiu em sua mente e ele se deixou levar.
            Era hora de voltar ao trabalho. Sentou-se e acomodou-se em frente ao seu computador. Não estava 100% sóbrio, mas conseguiria terminar agora e finalmente dormiria. Naquele momento ele desejava seus travesseiros mais do que qualquer outra coisa na vida. Concentração, foco, ou pelo menos metade disso era o que precisava. Quando voltou seus olhos para a tela, lá estava ela, surgindo do nada e dizendo que tinha uma novidade. Lançaria seu primeiro disco. Mas que raios de distância era essa? Mesmo mais de mil quilômetros longe, ela conseguia adivinhar as coisas? Seria sintonia da mente ou só coincidência? Ele era um homem prático. Então votou na coincidência.
Mas já que tinha perdido um pouco do seu tempo lembrando dela naquela noite e ele não gostava de perder tempo, resolveu falar tudo o que estava sentindo naquele momento. Falou tudo, ou quase tudo. Elogios foram trocados. Lembranças boas foram acordadas. Ele se sentia exausto, mas sem saber por que quis conversar. Distração, talvez. Já não queria mais pensar, a cabeça estava pesando demais. Iria dormir e que o resto do mundo esperasse.
Dormiu. E permaneceu em um lugar tranquilo e confortável, diriam que era um sonho, onde ideias vem avulsas as nossas cabeças, sem muito sentido ou coesão. E então ela apareceu de uma forma estranha e lhe falou muitas coisas mais estranhas ainda:
            - Eu queria dar-te algo diferente, mostrar-lhe muitas coisas. Mas no momento, infelizmente, só posso lhe oferecer palavras. O que pode soar um pouco frio, mas é a única coisa capaz de aquecer minhas lembranças. Juro que lembro do tom manso da tua voz e do sotaque carregado. Já disse mil vezes o quanto gosto dele, mas te direi mil e uma: adoro tua fala! E se, certa vez lhe pareci rude ou alheia ao que tu sentias, peço-te que me perdoes. Eu padecia de vergonha. Queria explicar-me, mas nem sequer foi me dada esta oportunidade. Tu agiste como se nada tivesse acontecido. Num dia estava falando sobre taças de vinho e sobre escrever sobre isso caso não acontecesse e depois evitou ao máximo ser gentil. Peço que perdoes, de verdade, eu iria explicar-lhe. E agora, do nada, tu voltas a falar como antes. Por isso questionei a tua sobriedade. Durante algum tempo, senti falta de conversar contigo. Senti mesmo. Porque me fazia bem.
            - Você me assusta com tudo isto! – Ele respondeu- O que exatamente você quer dizer? Onde exatamente você quer chegar?
            - Não tenho pretensão de chegar a lugar nenhum. Só disse o que sinto, porque ou nós dizemos as palavras ou elas nos devoram. E eu não sei por que você se assusta.
            - Porque tenho medo das coisas estarem sendo entendidas de formas erradas... Você pode me dizer mais claramente o que é tudo isto?
            - Não, não posso.
            Ela sorriu e ele acordou com gosto de álcool na boca. Sem saber exatamente se tinha feito besteira ou não. Mas não se preocupou muito com isso. As coisas sempre se resolveriam do jeito certo, ou pelo menos, era o que ele pensava. Contudo, de uma coisa, ele tinha quase certeza: aquela menina era o diabo. Ou pelo menos, era um dos demônios dele. Ela e aquelas suas palavras. Todas elas!

Gabriela Aguiar

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