Profissão: modelo, ex-morador de lixão


Não se atreveu olhar para baixo. Tinha medo do que poderia ver e não necessariamente da altura. Os olhos perdidos divagavam sobre a terra de ninguém. Ou ela teria algum dono fincando raízes em outro lugar inóspito? Não queria sorrir, pois não era o momento para isto. Mas não pode evitar.
            As pessoas ao seu lado pareciam estarrecidas, embora provavelmente não soubessem o significado dessa palavra. Um aspecto grotesco ainda dominava. Eram obrigados a dividir o seu espaço com aves vorazes a procura de qualquer resto que lhes garantisse a sobrevivência. Pobre, bem pobre, existência.
            Ele não se recordava ao certo como havia ido parar ali. Nascera longe, numa cama ensanguentada de hospital. Fora colocado para ninar em um berço de papelão e então rodou por vários lares até que, no fim, foi acolhido num pequeno barranco. Aprendeu a chamar de pai um rapaz que era muito jovem, e de mãe uma velha senhora. Quase ao mesmo tempo soube que precisaria trabalhar e viver próximo a um lixão.
            Aos 14 anos foi ensinado a ler e a escrever. Não tinha muito dom pra coisa, mas era rápido. Aprendia tudo com mais facilidade que os demais. Entretanto, o que mais chamava atenção no garoto era sua beleza. Tinha um porte esguio, alto e uma pele morena queimada de sol. Os olhos eram cor-de-mel, enquanto seus cachos pequenos eram bem mais escuros. As mocinhas mais atrevidas logo lhe deram uma infinidade de apelidos insidiosos. Diziam que só o seu olhar as levava ao mau caminho.
            Apanhou de alguns rapazes e bateu em outros. Nunca foi nenhum santo e não fazia questão de esconder isso. Ainda assim, sua mãe idolatrava-o. Mimo, diriam. Mas ele, na verdade, não poderia ser definido como mimado.


            Quando tinha 24 anos, uma mulher bem vestida o encontrou por aí e lhe disse que tinha porte de modelo. Deixou com ele um cartãozinho branco e uma promessa de vida boa. Primeiro, ele achou que tudo era uma grande piada e ignorou. Mas ao refletir sobre as oportunidades de sair dali resolveu tentar.
            Começou com pequenos bicos. Cresceu no ramo. Todos pareciam quere-lo usando suas peças ou sem nenhuma delas. Ganhou capas de revistas e jornais. Chamou atenção para a situação das pessoas que viviam como ele. Tirou muita gente do lixão em que morou. Aprendeu uma língua diferente. Se meteu em algumas confusões e foi vítima de muitos tabloides. Saber quem era sua namoradinha da vez era a sensação dos sites de fofoca. Ele achava graça. Porque isso era mesmo uma grande piada.
            Agora, aos 35, tinha dinheiro suficiente para criar seu próprio projeto para dar uma vida digna aos catadores de lixo. Conseguiu tirar muitos do local, principalmente crianças. E os que permaneceram, pelo menos viveriam de forma melhor. Fez muitas campanhas de conscientização para pessoas que viviam no lixão e moradores de rua. E isso não era, definitivamente, uma brincadeirinha.

            Estava supervisionando um dos seus projetos quando toda a sua história passou pela sua cabeça. Suas cicatrizes foram tocadas profundamente. Então, ele teve a convicção de que estava fazendo o certo. Tentaria dar oportunidade a quem não foi dado sorte.

Gabriela Castro Lima Aguiar

Ps: Esse texto é inteiramente ficcional. 

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