Descompondo a solidão
Estava cansado de ter que quebrar a
cabeça com palavras e no final elas não soarem como ele queria. Já havia
composto milhares de outras rimas e canções, sabia o trabalho e a dor de cabeça
que elas poderiam causar, mas hoje estava sem paciência para decifrar, desvendar
e racionar atrás da lógica musical.
Ele
nem mesmo entendia porque sua paciência estava tão escassa assim. Tivera um dia
normal, um pouco estressante no hospital, porém nada fora da correria de um
médico. Após terminar de atender seu último paciente no ambulatório passara na
capela para agradecer por mais um dia, coisa que ele também tinha por hábito. E
depois seguiu para casa, onde se encontrava agora sozinho martelando com um
pedaço todo rabiscado de papel.
Talvez
o problema fosse esse. Estar sozinho. Não, ele sabia que não era. Afinal fora
ele que escolhera a solidão. Durante toda a sua vida conquistou muitas pessoas,
não porque tencionava, simplesmente atraía as pessoas para si, provavelmente
pelo seu jeito de ser e por conseguir transformar tudo em música depois. Agora
ele havia escolhido não se envolver, na verdade, já se passavam quase cinco
anos que optou por isso e nem se questionava mais.
Tamborilou
os dedos na sua mesa nervosamente. Se por acaso se inspirasse em alguma
ex-namorada a música poderia sair com mais facilidade... Mas já havia escrito
tanto e sobre todas, não! Escrever sobre antigos relacionamentos poderia lhe
dar uma boa canção, porém não queria isso no momento. Uma incerteza pontiaguda
invadiu sua cabeça e ele resolveu desabafar um pouco com seu copo de uísque.
Haviam
se passado alguns anos desde que resolvera cursar medicina. Sempre fora um
apaixonado pela música, pensou em pegar seu violão tantas vezes e sair pelas
estradas... Mas seus pais com certeza nunca entenderiam, talvez nem ele
entendesse depois de ter amadurecido o suficiente para entender o quanto se
arriscou. Então escolheu a medicina, gostava de cuidar de pessoas, gostava da
correria, gostava de poder se sentir útil. Não poderia se queixar da escolha
profissional, até agora sempre se saíra muito bem. E continuava a tocar não era
mesmo?
Pegou
seu violão e o colocou no colo com muito cuidado. Dedilhou umas poucas notas e
gostou do som. Sorriu. Bebeu outro gole do seu uísque e voltou a tocar as
cordas do instrumento. Ora, então a bebida o ajudaria a compor. Pegou o papel e
rabiscou algumas poucas palavras. Não tinha ficado tão bom assim, mas foi o
melhor que conseguira a noite inteira. Deu os ombros, guardou seu violão e
resolveu dormir.
Para seu espanto as coisas no hospital estavam
calmas demais. Poucos pacientes e menores ainda queixas de problemas sérios.
Teria um dia tranquilo, previra. Aproveitaria para visitar um orfanato e levar
alguns presentes, já fazia algum tempo que ele prometera ajudar uma antiga
amiga e o abrigo de cães que ela criara. Ele gostava muito de animais, mas
lidava melhor com pessoas, então nunca havia pensado seriamente sobre a
possibilidade de criar um bicho de estimação.
Ao
chegar ao canil se espantou com a quantidade de cachorros. Alguns eram mais
velhos, outros eram filhotinhos ainda. Ele sabia que sua amiga vinha fazendo um
bom trabalho com os animais, chegou a ler uma reportagem sobre o abrigo em
algum jornal local, mas ainda assim se surpreendeu. Nem tanto pelo lugar e sim
por nunca ter ido lá antes. Quando a encontrou ela estava brincando com uma
bola de pelos amarela, na verdade, a palavra exata seria brigando porque o
cãozinho quebrara alguma coisa.
Ela
sorriu ao vê-lo e se cumprimentaram como velhos amigos, sem mais. A aparência
dos dois tinha melhorado nos últimos anos, mas ninguém se ateve a esses
detalhes. Não estavam interessados em personificações e mudanças físicas. Conversaram
por um bom tempo sobre a vida, a profissão e tocaram brevemente no assunto
coração. Era uma felicidade contínua reverem um ao outro, ainda mais numa
situação de solidariedade. Ele fez uma boa doação para o abrigo, ela ficou um
pouco constrangida com a quantia, mas não poderia recusar.
-
Não vai querer adotar nenhum cachorro? Pode te fazer um bem enorme, além de ser
um ótimo companheiro.
-
Eu não tinha pensado nisso...
Então
sua cabeça disse sim. Iria adotar um cachorro. Precisaria ser um pequeno, pois
apesar de morar num apartamento bem espaço, era um apartamento e ele não queria
prender demais o animal na sua rotina desvairada de médico. Pela manhã,
enquanto estivesse no hospital a empregada poderia tomar conta dele. Seria
ótimo! Um abandonado fazendo companhia para um solitário. Com o tempo iriam
entender-se bem, no máximo seriam vítimas das queixas dos vizinhos.
Ele
olhou para baixo e viu que a bola de pelos amarela perseguia uma mariposa. E o
cãozinho estava em vantagem. Não queria atrapalhar a diversão do seu novo
companheiro, mas ao ver o tumulto que ele estava causando pegou-o no colo.
-
Vou ficar com este!
Ao
chegar em casa teve que fazer algumas pequenas adaptações para o novo
inquilino. Comprou uma caixa de areia, uns brinquedos, uns protetores de móveis
e muita ração. O cachorrinho se comportava muito bem, exceto quando via algo em
movimento. Mas logo o problema era resolvido. Ah, ele também sentia uma atração
forte por sapatos, provavelmente a solução para isso não seria tão fácil assim.
Quando
ele chegava do hospital o cachorro ficava eufórico. Pareciam amigos que não se
viam há um longo tempo. E gostava disso. Não se lembrava de ter se sentido tão
querido assim antes... E nem de poder retribuir com a mesma intensidade. Achou
que encontrara o que precisava, pelo menos naquele momento. Seria eternamente
grato a Rafaela por induzi-lo a adotar.
Os
dias transcorriam sem maiores danos, algumas reclamações dos vizinhos, alguns
sapatos mordidos, alguns papéis rasgados e mastigados, nada além do esperado.
Ele pegou o violão, dedilhou algumas notas. Finalmente saíra da estagnação e
agora compunha algo que fazia sentido. Falaria sobre o companheirismo que
surgiu entre dois solitários que foram deixados a sorte de terem um ao outro. E
que sorte!
Quando
estava terminando sua composição o interfone tocou. Ele levantou a sobrancelha,
não estava esperando visitas e nem sabia se as queria naquele momento. Atendeu
o interfone de muita má vontade e se surpreendeu por ter gostado da notícia que
recebera do porteiro. Arrumou rapidamente que conseguiu e vestiu uma camisa.
Não se lembrava se tinha algo pra servir, mas jurou amor eterno a quem inventou
o delivery. A campainha tocou.
-
Rafaela! Que bom que você veio, eu só não estava esperando, então não repara na
bagunça - Cumprimentou-a após abrir a porta.
-
Conrado, desculpa não ter avisado antes. É porque eu tava passando aqui por
perto e quis vir conferir como vocês estão se saindo- Ela sorriu e logo pegou a
pequena bola de pelos que latia no seu colo.
-
Bem, muito bem! Com alguns sapatos a menos, mas isso podemos resolver depois.
Senta, fique a vontade.
-
E você ainda toca?- Ela viu o violão encostado no sofá- Que maravilha! Acho que
vou ficar aqui mais tempo que planejei.
Ele
sorriu. Adorou a ideia da permanência dela por algum tempo e agora teria alguém
pra quem poderia mostrar sua nova música. A noite realmente seria mais
agradável que o previsto. Ela sorriu. Não tinha prestado atenção que uns anos a
mais fizeram maravilhas em Conrado. E como ela estava bonita! Ele pensou.
Sorriram um para outro diversas vezes naquela noite e em muitas outras
seguidas.
Gabriela Castro Lima Aguiar
Comentários
Postar um comentário