Em busca de si
Acordou inundando por
uma manhã tempestuosa. Sem saber quem era, o que lhe pertencia e o que tampouco
lhe cabia. De si só sabia o nome e algumas conquistas realizadas ao longo do
percurso. Mas agora estava confuso, um pouco perdido talvez e então dentro dele
brotou o desejo de se conhecer, aprender mais sobre a sua história, a sua
origem e seu passado, que em sua mente era uma vaga e inconsistente lembrança.
Já
havia circulado metade do mundo, mas não era em nenhuma parte dela que se
situava sua origem. E num impulso resolveu buscar suas raízes mais profundas,
voltaria para a cidade onde fora concebido. Os riscos eram calculados, trabalho
arranjaria fácil devido ao seu extenso currículo, o problema seria enfrentar
sua família... Eles o entenderiam, cedo ou tarde, bom seria se fosse logo.
Deixar os amigos também o incomodava, mas era necessário, no momento era
realmente necessário.
Partiu
na madrugada enquanto a cidade inteira dormia. Fora julgado e contestado.
Resolveu apesar de tudo seguir sua intuição, não queria enlouquecer com a fúria
dos seus pensamentos. Era hora de colocar tudo em pratos limpos e descobrir...
O porquê, o onde, o como e principalmente, o quem.
O
avião decolou na sua cidadezinha pela noite. Fora recebido sem muito impacto
por alguns conhecidos, sem muitos questionamentos sobre o que fora fazer ali,
isso era ótimo. Quanto menos que tivesse que falar sobre si, melhor. Fazia 20 anos que não pisava naquele solo,
desde que se fora, aos oito, sonhava com o local, mas nunca tinha regressado.
Passou
duas semanas inerte em seu pensamento. Dedicou esse tempo pra conhecer de novo
a cultura local e se adaptar a maneira de vida das pessoas. Tudo era muito
diferente e ao mesmo tempo tão interessante... Ele reparou que as pessoas mais
humildes eram mais carismáticas, não sentiam medo de se aproximar. E as com
mais poder aquisitivo eram mais frias, arrogantes e não deixavam de ter um lado
amigável.
Encontrou facilmente um
trabalho como professor de espanhol, eu um cursinho de idiomas qualquer. Devido
ao seu conhecimento de mundo e a sua fluência na língua foi aceito sem muitos
questionamentos. Era um lugar fervilhante, no começo o assustava, tinha medo de
que fosse capaz de repassar o ensino e pensava seriamente em desistir. Mas aos
poucos foi se acostumando, o interesse dos alunos o motivou a ser firme. E
quanto ao seu objetivo inicial... Quase era hora de confrontá-lo, mas
precisaria de um pouco mais de tempo e coragem.
Ricardo então decidiu
que já era hora de enfrentar pequenos obstáculos e resolveu ir até um dos
lugares preferidos na sua infância. Era estranho sentar-se na beira daquele
lago depois de tanto tempo. E mais assustador ainda o fato de que podia sentir
as vibrações do lugar. Ele tinha dez anos quando pisara lá pela última vez,
apenas uma criança sem compromisso algum. Hoje apesar de todas as
transformações em sua mentalidade o que sentia em estar ali não mudara em nada.
A
brisa matinal cobria seu rosto com uma glória implacável, ele fechava os olhos
para contemplar melhor aquele momento. Tudo dentro de si estava intacto. Nenhum
adjetivo aumentara ou diminuira, os verbos continuavam todos com sua urgência.
Permitiu-se mais um pouco de descanso e deixou sua mente fluir por outros
caminhos. Precisava convencer a si mesmo que falar com aquele homem era seu
objetivo e que conseguiria isso no momento certo. A única coisa que o
aterrorizava, e neste momento mordeu o lábio devido à tensão, era não obter a
resposta que desejava.
Ele ansiava em conhecer
seu pai, do qual sabia apenas o nome e umas histórias não muito agradáveis aos
ouvidos de qualquer pessoa de bom senso. Queria vê-lo e ouvir dele o porquê de
tanto descaso e porque ele simplesmente lhe negara ao nascer. Havia provas da
sua paternidade, mas ele refutava e nada o fez mudar de idéia e assumir o que
tinha feito o que tinha criado. Sua família se impôs. O homem que havia lhe
dado a vida era cruel. E tinham medo do que ele faria com o filho, com o
próprio filho.
Passou semanas, mais
precisamente meses, discutindo consigo mesmo sem o intermédio de um espelho,
como o abordaria. Pouco importava onde ou com quem, só precisava saber as
palavras certas. Ele julgava necessário impactá-lo e mesmo que fosse uma utopia
fazê-lo pensar sobre os anos que tinham perdido. Mas queria um conserto ou pelo
menos enxergar arrependimento nos olhos do pai, só isso seria o suficiente para
acalentá-lo e entender que sua jornada não foi em vão.
Então um dia, quando se
decidiu pronto, marcou um encontro. Combinou em um barzinho qualquer como um
velho hábito de boêmio, o que decerto seu pai era, porém vestido em um paletó.
E neste momento ele o viu. Ricardo tremeu, pois em nenhum momento dos seus
discursos preparou-se para aquele olhar lascivo e de certa forma com um ar de
desdém. Mas isso não o deteria, o rapaz encheu seus pulmões de ar e foi de
encontro ao seu maior distúrbio durante anos.
Conversaram como dois
estranhos, entretanto, assim o eram. Por alguns momentos tiveram conversas
frívolas sobre o tempo em países estranhos, pelo menos, pensou Ricardo, o homem
estava disposto a ter algum tipo de diálogo. Mas foi uma primeira e errônea
impressão. Logo ele percebeu que o pai estava incomodado com aquela situação e
naquele momento pensou em iniciar seu longo e voraz discurso, sobre a criança
abandonada por um pai sem coração.
Abriu a boca num gesto
ameaçador, mas deteve-se a pronunciar um boa noite e retirou-se da mesa. Depois
de tanto tempo pensando e de tantas provocações ele percebeu que seu verdadeiro
motivo não era julgar o pai ou cobrar explicações, e sim descobri-lo. Então ele
notou que aquele velho com deboche no rosto era um homem que não merecia seus
trunfos. Era só mais um desconhecido, como tantos outros que havia visto pela
vida. O homem ficou surpreso com sua saída, mas nada fez para impedi-lo.
Ricardo chegou em casa
um pouco confuso, agitado talvez. Mas sentia-se feliz e pela primeira vez
compreendia o quanto da sua vida não devia aquele homem, ele pensou que deveria
agradecê-lo por tê-lo abandonado, porque ele seria um medíocre se o tivesse ao
seu lado. E então sorriu febrilmente. Foi necessária toda uma viagem a outro
lugar quase desconhecido para perceber quem realmente era e para aprofundar
suas raízes.
Entretanto, nada tinha
sido inútil. A experiência daquela viagem tinha sido única. Fez novos amigos e
redescobriu velhos. Conheceu mais afundo sua cultura de origem, apesar de
julgar muitas coisas desnecessárias, mas divertira-se com tudo aquilo.
Tornou-se independente financeiramente e mais importante livrou-se de um
castigo que jamais tivera. Ele então agradeceu por ter conseguido saber quem
era, mesmo que já soubesse desde o início e refletiu sobre o que tinha se
tornado, nada parecido com o pai, ainda bem.
Rapidamente foi
recolhendo suas coisas e com elas revendo cada lembrança daquele lugar. Cada
emoção nova ou despertada dentro si, que agora inundavam suas emoções e
enchiam-se num crescimento pessoal estrondoso. Nada foi como ele planejara,
tudo tão diferente e tudo tão maravilhoso... Sentiria saudades, mas era hora de
partir e descobrir-se ainda mais em outro lugar do mundo.
Gabriela Castro Lima Aguiar
* Essa história foi baseada em fatos reais, mas por questões de privacidade os nomes verdadeiros não foram citados
ótimo gabi! me identifiquei, você sabe...
ResponderExcluirSim, sei. Espero que tenha sido com parte de superação :)
ExcluirPelo seu texto recomendo vc a começar a ler Saramago. Vc vai gostar. Parabéns.
ResponderExcluirObrigada pela sugestão :)
ExcluirCom entra como anônimo deixa eu assinar aqui: Jacqueline Dourado
ExcluirGabriela, ou simplesmente Gabi, acabei de te conhecer no Seminário de EPJ, mas devo te dizer que fiquei encantada apenas em saber que já tinha lido 37 livros nesses 5 meses. Portanto, seu texto é apenas reflexo de sua inteligência. Parabéns! JUJU
ResponderExcluirMuito obrigada Juju :) Fiquei muito honrada com seu comentário :)
Excluir:)
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